Rua do Larguinho, de Lilia Guerra

Lilia Guerra transforma um bairro inteiro num personagem em “Rua do Larguinho e outros descaminhos” (Patuá, 2021), onde o vai e vem de seus moradores revelam as marcas e o protagonismo de inúmeras mulheres que ali habitaram.

Bigu, Valdumira, Dinorá, Doroteia, Dalva, Dolores, Cidália, Dagiza, Sá Narinha, Dora, Caridade, Lila, Cassiana, Regininha, Marília, Risoneide e Terezinha. “Toda mulher, além de ter seu próprio nome, também se chama Esperança”. Se “os homens gozam de muitos privilégios neste mundo”, nada mais simbólico e expressivo do que dedicar cada capítulo às mulheres do Fim do Mundo. Como quem as chamam pelo nome e mais do que dizer que elas estão presentes, tornando-as visíveis numa sociedade excludente, eternizá-las, seja por meio desta obra literária ou da memória afetiva que passamos a ter por elas ao prestarmos atenção às suas histórias.

Lilia transita com extrema facilidade entre a norma culta e a padrão/coloquial, a linguagem do morro e a do asfalto, dos consultórios médicos e dos barracos. Sem que isso soe caricato e artificial (ou revele mais a inépcia de quem se atreve a representar tal diferença do que as camadas que constituem essa questão), como é bastante comum em algumas obras que retratam as diversas classes sociais. O que torna a linguagem num dos primeiros elementos que saltam aos olhos na obra em questão, dotando suas personagens com identidade própria na voz, não apenas de modo estanque, sem alterações na estrutura dos discursos; mas dando a elas uma dinâmica que é natural da própria fala, como é o jeito de nos expressarmos, de acordo com nossas vivências, e muito bem representado na trajetória de Pití, a principal protagonista e narradora da obra.

Mais do que propriedade para manipular a linguagem feito matéria-prima, tal feito revela uma autora madura, com total domínio narrativo e consciência do seu projeto literário. Uma das poucas autoras (e autores!) que consegue mostrar muito mais do que falar. Isto é, problematizar as questões por meio da ação muito mais do que por meio do discurso propriamente dito. Tais como nos casos de exploração do trabalho, violência social, aborto e gravidez precoce, bem como no capítulo sobre pobreza menstrual em que este termo sequer aparece, mas o drama vivido por centenas de mulheres aparece sem nenhuma timidez ou o pesar da mão que a urgência de alguns temas e a gana de tratá-los seduz alguns autores.

Rua do larguinho é tudo aquilo que se espera de uma rua habitada e frequentada por seres diversos, complexos e humanos, com suas imperfeições e virtudes, temores e sonhos, viscerais tanto nas paixões quanto na indiferença. A autora não se inclina ao discurso fácil viralizado nas redes sociais, feito para agradar multidões, com suas frases de efeitos expelidas pelas personagens entre um diálogo e outro, ou em monólogos e elucubrações mentais. Lilia insere os temas numa cena, os faz serem vivenciados, mostrando como eles acontecem no dia a dia de tanta gente.

Seja qual for a sorte de Rua do larguinho em sua trajetória, uma questão é certa, Lilia Guerra consolida-se cada vez mais como uma das autoras mais potentes da sua geração. Não apenas pelos temas desenvolvidos em suas narrativas, marcados pelos diversos males que constituem e assolam a sociedade, mas sobretudo pela destreza na forma como ela os abordam.

Lilia Guerra é paulistana e ariana. Abril de 1976. Em 2014, publicou o romance “Amor avenida” pela Editora Oitava Rima. Contribuiu com as coletâneas “Contos & causos do Pinheirão” e “Taras, Tarô e Outros Vícios” com os coletivos Armário do Mário e Palavraria, respectivamente. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente dedica-se à confecção de contos. Em 2018, lançou o livro de contos “Perifobia” pela Editora Patuá – finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019.

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