Velhos, de Alê Motta

O que é a história humana na Terra, como diria Nietzsche, senão um reles minuto diante de outras eternidades em que ela não esteve presente? Ninguém duvida que a passagem do tempo seja inevitável para todos e que a própria vida seja implacável em diversas situações e suas consequências, muitas delas, inclusive, acentuadas na velhice. Como se observa, por exemplo, na relação de amor e ódio que estabelecemos com alguns personagens ou a montanha-russa de afetos provocada por algumas experiências literárias. Algo muito semelhante ao que a escritora Alê Motta nos proporciona em Velhos, seu livro de contos lançado em 2020 pela editora Reformatório.

Ao longo de seus trinta contos, Alê Motta tece uma representação objetiva e sintética do real, ou mais precisamente um recorte ou momento específico na vida de seus personagens. O que, por um lado, torna a economia do texto um elemento estético, sem lugar para tergiversações filosóficas e perfumarias líricas. E por outro, condiciona os lugares e as situações comuns que ambientam e movimentam as tramas a cederem espaço ao fator humano e a sua complexidade.

É o que em certa medida ocorre no conto de abertura, “Herança”, onde tudo e todos se dispõem a apresentação da persona de um avô ranzinza e abjeto. O título nos sugere uma coisa, mas ao contrário do que se possa imaginar, há heranças que ultrapassam a questão material e se tornam elementos essenciais na constituição dos sujeitos. Se o velho avô “brilhante na maldade” pudesse rir por último ou jogar na cara dos demais membros de sua família que ninguém era superior a ele, certamente estufaria o peito em dizer que era o único a não levar para o túmulo as mãos sujas de sangue e a suspeita de um crime nas costas.

Como quem se propõe a problematizar a velhice nos mais variados contextos, Motta nos fornece um olhar mais amplo sobre a sociedade e suas diversas camadas: do racismo estrutural em “Desculpas” que não poupa nem mesmo um preto-velho-rico; aos anseios de um viúvo e uma viúva ante o badalar das horas de um encontro marcado. Alguns condenados a situações vexatórias e ainda assim otimistas o suficiente para tirar proveito; outros tidos como demasiadamente velhos para exercer o dever cívico. Intolerantes, cambalacheiros, amnésicos, longevos, suicidas, “Gorduchos e gorduchas, magrelos e magrelas, mais brancos que pretos” em clínicas particulares; muitos tendo como únicas companheiras as dores, tendinites, enxaquecas, artrose, asma, sinusite; os que tornam os outros felizes quando morrem, e os que se sentem mais vivos e se tornam felizes na companhia dos outros.

Morte e vida caminham lado a lado em Velhos. É certo que algumas páginas predomina o tom melancólico, como não poderia ser diferente, mas outras transbordam leveza e humor, mesmo nas situações mais trágicas. A propósito, as reviravoltas contidas em alguns contos são muito bem arquitetadas pela autora. Sobretudo as narrativas em que tudo parece caminhar na mais absoluta normalidade, como em “Festas”, e o seu desfecho que em alguma medida lembra os roteiros de Quentin Tarantino. Em suma, uma obra repleta de histórias para inúmeros gostos e escritas com maestria — quem algum dia encarou esses “Velhos” com a devida atenção, disso não duvida.

Alê Motta nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de Interrompidos (Reformatório, 2017).

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