Júpiter Marte Saturno, de Irka Barrios

Vista como uma espécie de espelho da zona mais crepuscular da mente e ao mesmo tempo da sociedade, embora seja óbvio dizer, o estranhamento é de longe a característica mais marcante de “Júpiter Marte Saturno” (Uboro Lopes, 2022), da escritora Irka Barrios. A crítica especializada e o mercado literário falam de um novo gótico latino-americano (incluindo o Brasil!, por supuesto), com seus elementos do terror, das distopias, do mítico e fantasmagórico para tecer críticas sociais. Um território consideravelmente impulsionado por mulheres.

O modo como Barrios conduz suas narrativas é outro fator a ser destacado, a expertise na contenção do suspense feito um magnetismo até eclodir a tensão criada num estado insólito. Vale lembrar a conquista do Prêmio Brasil em Prosa 2015 com o conto “O coelho branco” (que integra a presente obra em análise), e suas indicações ao Jabuti 2020 com “Lauren” e ao Odisseia de Literatura Fantástica 2022 com “A parte de dentro”.

Aos leitores menos familiarizados com o gênero, talvez a série The Twilight Zone seja a referência mais próxima do caráter inexplicável e obscuro que norteia os fenômenos e as ações dos 14 contos que compõem a obra de Barrios. O próprio alinhamento inusitado dos planetas no título transforma-a neste corpo estranho.

O deslocamento temporal de “O coelho branco”; a insensatez e a selvageria dos homens em “Letra A”; o imperativo da morte e os modos como ela nos afeta em “Damião sob a pirâmide”; a insubmissão juvenil e a curiosidade mortífera em “O verão de 85”; o terror psicológico (ou sobrenatural?) em “Bonecão”; os limites do corpo e da mente em “Manchas como asas de borboleta”; a naturalização do absurdo em “Drosophila”; o surto esquizopsicótico em “O bicho”; a condição inóspita da interioridade humana em “Horizonte alaranjado”; o canibalismo gourmet em “Conceito comida semelhante”; a autoimolação em “As viúvas do silo”; o tabu animalesco de “Flores domesticadas”, e a invisibilização de si em “Parte de dentro”.

No último conto que nomeia a obra, Irka Barrios reúne grande parte dos elementos explorados anteriormente, criando assim uma atmosfera densa em alguns momentos e rarefeita em outros. A narrativa passeia por caminhos espinhosos, ou insinua a passagem por alguns temas controversos e necessários, deixando-os em suspenso. Tudo sempre como uma possibilidade. O assassinato, o abuso, a loucura, o sobrenatural, o real e o irreal. Trata-se de um verdadeiro jogo com o imaginário do leitor, em que, quanto mais fértil e aberto a essa “brincadeira”, mais intensa é a experiência.

A obra não chega a ser uma casa de espelhos, como a frase inicial deste texto poderia sugerir, pois a imagem humana refletida em “Júpiter Marte Saturno” não é tão distorcida e distante daquela que transmitimos e vemos. Os reflexos projetados em cada cena ilustram bem o lado mais desumano de uma sociedade selvagem e cruel, além da nossa fragilidade e pequenez diante daquilo que a racionalidade não alcança. O curioso, no entanto, é a sutileza como isso é exposto, nunca jogado em nossa cara aos berros, com cores fortes ou sangue jorrando de suas páginas. Pelo contrário, capaz até de passar desapercebido por leitores menos atentos — ou afoitos em descobrir o que está acontecendo —, visto que este retrato social-humano às vezes se encontra em segundo plano.

Faz um bom tempo que não ouço alguém dizer que a vida é um mistério, e a grandiosidade disso, dos dilemas e incertezas inerentes a ela, encontra-se além da dúvida sobre de onde viemos, para onde vamos e por que existimos. Ao menos o que Barrios torna interessante observar é o como, ou seja: a nossa postura ou modo de ser diante dos absurdos da vida.

Irka Barrios é Mestre (PUC-RS, 2019) e atualmente cursando doutorado em Escrita Criativa (UFRGS). Colaboradora do blog Escuro Medo e da Revista Ventanas, professora de oficinas literárias na GOG Ideias, mediadora do Clube de Leitura Escuro Medo e atua na organização do coletivo Mulherio das Letras – RS.

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