Porco de Raça, de Bruno Ribeiro

A luta de um homem contra tudo e contra todos ao seu redor, inclusive contra si mesmo. Um homem acostumado a perder e a se perder. Costume esse que está longe de ser uma aceitação, vale sublinhar, caso o entendimento mais comum do termo precipite a conclusão. Refiro-me ao enfrentamento diário das regras que norteiam a sociedade, resultantes de práticas impostas coercitivamente ao longo do tempo. O que alguém deve e o que não deve fazer. O que deve e o que não obedecer, sentir, desejar, odiar, venerar e, sobretudo, o que ele deve e o que não deve ser. A vida deste homem assemelha-se a de inúmeros negros iguais a ele, impelido a encarar sua existência feito um campo de batalhas desde o primeiro berro. Homens e mulheres que se veem diante de um mundo dicotômico, o dos homens brancos e o de sua cor, cuja única alternativa possível é equilibrarem-se nessa balança sociocultural ou escolher apenas uma das partes.

Seria esse o maior dilema problematizado pelo escritor mineiro-paraibano Bruno Ribeiro em seu premiado romance “Porco de Raça” (DarkSide, 2021)? O que o diferencia das demais obras que falam sobre racismo, espetacularização da violência, exploração sexual, capitalismo, desigualdade social, cultura e ancestralidade?

Com a narrativa desenvolvida in medias res (contada do meio da história pra frente), o leitor é lançado de cara no olho de um furacão sem nenhum aviso prévio e sem escapatória. O “agravante” neste caso se dá na apresentação que o narrador faz de si mesmo enquanto personagem principal, um derrotista acostumado a apanhar desde cedo, sparring dos vencedores, um Porco Sucio, indigente, escória da sociedade, cujo risco de não cair nas graças dos leitores em busca de personagens altivos, destemidos, limpinhos e espirituosos é considerável — se o objetivo do autor realmente fosse esse, o que acredito estar longe de ser o caso de Bruno Ribeiro.

Personagens de tal estirpe requerem tempo narrativo para estabelecer um pacto de confiança e empatia com o leitor, expondo situações conflituosas e eventos traumáticos que o afetarão de modo determinante e por vezes irreversíveis em suas relações pessoais e afetivas. O que requer uma articulação dos fatos muito bem planejada, e seria muito mais fácil em uma narrativa linear. Sendo declaradamente atraído por personagens decadentes, miseráveis e marginalizados, Ribeiro contradiz a norma, subverte a narrativa e conduz a construção do seu protagonista com extrema precisão, revelando aqui e ali algumas de suas características sem quebrar o ritmo nas duas primeiras partes do livro.

As aspas no agravante dito anteriormente não se restringe apenas ao tipo social abordado na obra, mas à própria dinâmica da narrativa ao adentrar em outra atmosfera na terceira parte, quando a história sofre uma guinada cronológica e passamos a conhecer a infância do narrador-protagonista e seu irmão Bruno, uma espécie de duplo descrito pelo narrador como uma versão de si mais acabada, perfeita, superior.

Como destacado pelo filósofo francês Clément Rosset, o duplo é um tema caro para os filósofos e dramaturgos gregos, e insistentemente tratado no século XIX por Hoffmann, Chamisso, Poe, Maupassant e Dostoiévski. É de Rosset também a frase que diz “nada mais frágil do que a faculdade humana de admitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real”, e que “o real só é admitido sob certas condições e apenas até certo ponto: se ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa”. Daí o fato de não me espantar nem um pouco se algum leitor menos interessado em ver a realidade nua escancarada em “Porco de Raça”, sentir-se incomodado e considerá-la uma forçação de barra absurda e desagradável.

Realidade? Sonho? Dano cerebral? Esquizofrenia? Enquanto o protagonista se vê inúmeras vezes à beira do abismo, incerto sobre a realidade, confundindo sua história, suas falas e suas ações com as do seu irmão, é curioso que numa narrativa delirante como esta, uma idosa com Alzheimer no leito da morte e outra com o estado mental igualmente debilitado em um asilo sejam as personagens com visões de mundo mais críveis e coerentes. Como se sabe, é mister duvidar daquilo que uma narrativa em primeira pessoa nos apresenta, principalmente quando ela é feita nas condições em que o narrador Porco Sucio se encontra do início ao fim da obra, drogado, com a cabeça arrebentada de pancada e em constante estado de negação, segundo os seus familiares e sua ex-namorada, Wênia.

Bruno Ribeiro não facilita a resolução da questão, não entrega de mãos beijadas a dissolução da dúvida, mesmo no fim, apresentando-nos duas possibilidades de encerramento, um evento complementar ao anterior que não conhecíamos. Ou tudo não passa de uma artimanha para implantar a dúvida? Um delírio a mais do narrador, versão alternativa da realidade de um homem-morto em seu no último suspiro?

Seja como for, Porco de Raça nos oferece uma visão ácida e impiedosa sobre o status quo em nos metemos, e aponta o caminho danoso que a abertura de mão da parca humanidade que nos resta incide — se for possível ainda falarmos de humanidade.

Bruno Ribeiro é escritor, tradutor e roteirista nascido em 1989, em Pouso Alegre, Minas Gerais, e que atualmente vive em Campina Grande, Paraíba. Autor de Arranhando Paredes (2014), traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider, Febre de Enxofre (2016), Glitter (2018), finalista da 1° edição do Prêmio Kindle e Menção Honrosa do 1° Prêmio Mix Literário, Bartolomeu (2019) e Como Usar um Pesadelo (2020). Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), venceu em 2020 o Prêmio Machado DarkSide com o romance Porco de Raça e também o Prêmio Todavia de Não Ficção.

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