Dizer que o fazer poético assemelha-se com a de uma tecelã, que as palavras enquanto matéria prima desse ofício são como os fios de uma trama entrelaçados na formação do tecido, nunca me pareceu tão apropriado quanto em “Cartografias do corpo que canta” (Patuá, 2021), de Bárbara Mançanares. Em seus pontos retos, cruzados, entrelaçados e de nós, suas “mãos espiam os confins da terra/ para compreender teu corpo-idioma” e assim como nos versos dedicados a outra poeta, “as linhas são pés/ e os pés, peixes/ eles percorrem um mapa costurado a outro mapa/ cujas pontas se debruçam/ no parapeito da janela feito crianças levadas”, nos revelam as mais diversas imagens que compõem a cartografia desse território, suas cores, relevos e sons.

A menção aos poemas de Bárbara Mançanares aqui, segue a regra de destaque ao primeiro verso, visto que não há referência de título em nenhum dos textos que preenchem as cinquenta e seis páginas da presente obra, intercaladas por cinco imagens. A primeira delas traz o mapa-múndi estampado no tecido tensionado/emoldurado pelo bastidor, contendo ao centro o bordado de um coração humano com ramos de folhas e flores saindo de suas artérias e veias e se estendendo pelos continentes, feito rios, e a frase na base: “Todo corpo é afluente”. A segunda nos apresenta um tecido solto, com o bordado de uma igrejinha ao centro, raízes negras estendendo-se de sua porta ao plano inferior, feito trilhas/córregos, e ramos de trigo dourado saindo de suas laterais. Uma linha branca traça a divisa entre a pintura do planalto, montes e serras azuis, que por sua vez remetem ao movimento das águas oceânicas, e três aves sobrevoando-as. A terceira imagem retrata a pintura de um passarinho azul rodeado por folhas, flores e ramos bordados em tons amarelos, dourados, cinzas e preto. Enquanto a quarta traz o bordado de uma casinha com um ramalhete de flores e trigo saindo de sua chaminé; e a quinta e última imagem retoma o tema do mapa-múndi, pintado de azul com ramos e flores brancas bordados nas superfícies, observados de uma certa distância por garota de vestido bordado com um passarinho em cima dos ombros, dando forma ao verso sobre a poeta que “imagina que as linhas são pés”, traçando a paisagem e ao mesmo tempo livre para vagar sobre um céu sem fronteiras e entoar seu canto.
Assim como a arte do bordado atravessou os séculos, sendo passada de uma geração a outra, o eu lírico do terceiro poema reconhece o que aprendeu com aquelas que a antecederam, como “deixar as portas bem trancadas”, sem deixar de ressignificar outros cuidados como abrir “as janelas como quem grita”, permitindo que “no chão se formem poças/ se formem rios/ bacias inteiras”, que depois se tornará no mar que apaga seu nome traçado no chão, infinitamente, “como se fosse uma cobra a morder a própria calda”. E há também uma busca, uma necessidade de preenchimento do vazio, esse encontro que se dá entre os corpos, como se o próprio corpo fosse uma descoberta a ser feita. “Se o céu é para que eu possa/ sorver a água da terra/ moldar meu corpo como a uma moringa/ sem me preocupar com o relógio solar/ que não demarca a passagem do tempo// sustento a palavra que açoita meus pés/ o útero entre os dedos enlameados/ do lado de dentro, uma mulher desperta o sono da terra e canta”. Modelagem do corpo que, assim como na modelagem da própria terra, não há forma, “somente esta vontade de moldar a terra/ como se fôssemos cegos e suspeitássemos do mundo”.
O anseio por um mundo justo sobre o qual discorre, o milagre do pão e da “cura do que infringe”, a espera do outro que a “deixa sozinha na rede toda manhã”, de se lançar à explosão ao se ver nos olhos da guerra, já não ser mais preciso se apoiar em escombros e não esconder as palavras que “correm como crianças famintas pelas ruas/ como se todos os dias fossem dias/e por isso não precisam temer as pragas bíblicas/ e os monstros debaixo da cama”. Como quem busca “decifrar o gorjeio das palavras com precisão cirúrgica/ costurar os pulsos as juntas/ saturar as feridas/ sentir na boca o ferro e o doce/ indistintamente sorver o amargo/ lavar as mãos no barro enquanto os olhos fulminam o céu nesta/ [tarde febril/ sorrir com o corpo em movimento/ enganar o estetoscópio que não capta os delírios da terra”.
Bárbara Mançanares alinhava preces e rezas, desejos e lembranças, entre o fiar e o roçado, como quem encara “a vertigem do dia mais quente do ano”, escancara os dentes para cantar a esperança, bordar e tecer as palavras, as mesmas que se desfazem ao serem ditas inúmeras vezes, e escreve “o barro como os profetas do jequitinhonha”. Em seu ofício de caminhar com os pés fincados à terra, a poeta sabe que “às vezes, é preciso transpor as montanhas e rabiscar as linhas das mãos/ para brotar rearranjos”. Refazer o destino, denunciar descaso, os dejetos das mineradoras nos rios, a morte dos peixes, das vidas que o margeiam, a violência sexual, social, urbana e do Estado que alveja outro corpo com oitenta tiros, sem deixar de se encantar com o pássaro que invade a casa e apascenta o “sangue vulcânico/ que tinge os papéis sobre a mesa” de quem “escrever como se navegasse em linha reta/ e traduzisse o céu das seis da tarde como um céu de papel/ que seca à sombra/ em um varal no fim do oceano”, “escrever para apagar a letra para decompor as imagens/ arrancar as folhas rente à derme (…) até que atinja a voz e não atinja mais nada”.

Bárbara Mançanares nasceu em Alfenas e cresceu nas ruralidades de Paraguaçu, Minas Gerais. É poeta, bordadeira e integrante da Academia Paraguaçuense de Letras. Graduada em História (UFOP) e mestra em Museologia e Patrimônio (UNIRIO), inscreve com as linhas e as letras o que suspeita no mundo. É autora do livro “Maio” (Quintal Edições, 2018) e possui poemas publicados em antologias e coletâneas – “Antologia Ruínas” (Editora Patuá, 2020) e “Tomar Corpo” (Editora Jandaíra, 2021).