Sob o caminho uma rajada de ventos, de Karine Bassi

Ambientado na periferia de Belo Horizonte, a estreia de Karine Bassi no Romance é um registro sócio-filosófico sobre os dramas existenciais e socioculturais da juventude periférica, e a constituição do ser inserido num universo marginalizado, com suas múltiplas realidades.

Narrado em primeira pessoa por uma jovem universitária denominada Sofia, Sob o caminho uma rajada de ventos (Venas Abiertas, 2020) é também uma obra de emancipação, autoconhecimento, militância e pertencimento. Ao dividir suas atividades acadêmicas com a sua luta pela sobrevivência na quebrada de uma das maiores capitais do país, com a venda de bolo de cenoura e de fanzines, ao longo dos 18 capítulos a narradora-protagonista reflete sobre a sua condição de mulher negra e a escrita como criação de “uma outra realidade para suportar esta que nos acontece, para que o futuro venha menos estranho”.

Para além da autoficção e as questões recorrentes na Literatura Marginal, tais como: a violência policial e familiar, o racismo estrutural, o desemprego e a criminalidade, que se apresentam em Sob o caminho uma rajada de ventos de modo indireto — isto é, mais no discurso do que na ação —; um dos elementos narrativos que mais chama a atenção na obra de Karine Bassi é a forma como ela desenvolve o texto. Notadamente influenciada pela poesia slam (poetry slam – poesia falada), o lirismo das frases curtas e a palavra como matéria prima se sobressaem em relação à trajetória da personagem em vários momentos, o que em outras obras do gênero ocorre justamente o inverso.

Em seu corre diário para garantir ao menos o aluguel do mês, “vendo a vida passar lentamente, entre o vão e a plataforma. Entre um vão e outro. Alguns em vão, outros nem vão”, a personagem-narradora, Sofia, estabelece um diálogo com o leitor sobre a insegurança de expor a própria escrita e, consequentemente, de expor a si mesma: “Eu era marginal de corpo e casa e só fui me dar conta depois que vi minha literatura circulando além das vielas”.

O fluxo de consciência e a metalinguagem tornam-se igualmente objetos de reflexão de Sofia, sobretudo no que diz respeito ao valor e o peso que as palavras tem nos discursos. “As palavras perdem o peso e se tornam palavras de anúncio, que servem para vender o produto do dia, mas no dia seguinte já não valem nada: podem ser desmentidas, mal interpretadas… Não importa. Nestes tempos de palavras de publicidade, a palavra da escrita tem um apelo mais, ao ter maior consistência”. Se por um lado há uma necessidade de desconstrução da palavra (no sentido derridariano do termo), seja ela escrita ou falada, “há momentos em que as palavras, por mais que pesem, são a única bagagem que queremos carregar. Talvez porque nos permitem, de certa forma, não carregar mais do que a nós mesmos”.

É justamente nesses momentos em que as palavras retiram o peso da vida em seus inúmeros aspectos que a narradora discorre sobre uma gente que “sangra todos os dias para se manter viva”, a faculdade como “um lugar de violência psicológica constante”, a lógica de romantização dos esforços e a ideia de que o fracasso é fruto da falta de vontade, a necessidade de “um trabalho remunerado, de carteira assinada, para conseguir me sustentar nessa selva”, e, sobretudo, o testemunho do “momento em que uma parte da infância morre” — que apesar de ser marcado pelo momento em que Sofia se despede da mãe, essa passagem para a vida adulta transcorre do início ao fim da narrativa, ressignificando e expandindo ainda mais o elo entre mãe e filha.

Por se passar entre o morro e o asfalto, entre a quebrada e o centro, os bares onde ocorre os saraus, sua própria casa e a faculdade, os espaços se tornam outro elemento problematizado em Sob o caminho uma rajada de ventos. Principalmente a rua, “um dos lugares mais bonitos da cidade quando abraça a poesia, mas é também um dos lugares mais cruéis quando essa lhe falta”. O próprio título é um forte indicativo de que “o caminho” não se restringe aos fatos vividos pela protagonista e as demais personagens. O próprio lugar (a rua) onde as experiências mais significativas acontecem é símbolo de vivência transformadora e de encontro com outros personagens à mercê da mesma sorte, ou em situações ainda piores.

O exercício peripatético realizado pela narradora-personagem de Karine Bassi, é fortemente marcado pelo uso da repetição, quer seja como função persuasiva (construção de sentidos), ou como elemento estético tanto de uma mímesis da oralidade quanto de uma poética falada, próxima da técnica discursiva das batalhas de performances poéticas, slams.

O mundo como representação-projeção da nossa cabeça; o frio e a chegada do inverno como vivência do tempo de penúria, sofrimento; a periferia e o centro na relação entre dinheiro e miséria; a curiosidade e a busca pelas ideias que movem os protestos e movimentos sociais ao reconhecer em tais discursos a própria realidade; o desejo de se engajar impedido pela voracidade do tempo e os afazeres em prol da subsistência; a justiça como “uma mão vazia que o estado oferece em troca de votos e cesta básica”; a poesia marginal e a ancestralidade.

Entre as inúmeras tragédias cotidianas de uma mulher negra e periférica, Bassi descentraliza o foco da sua narrativa, via de regra centrada na protagonista, para guiar o nosso olhar para o seu entorno, por entender que “uma pessoa é como é, mas esse ‘como é’ leva dentro pelo menos um cacho de maneiras diferentes de ser”, que se diferem precisamente pela relação estabelecida com o Outro, quer seja tal relação definida por sororidade, alteridade ou irmandade.

Se o maior desejo de Sofia (e o da sua criadora) é ver sua literatura alcançar o maior número de leitores, além daqueles que estão na quebrada, a experiência literária que a obra de Karine Bassi proporcionada é um bom indicativo de que isso é apenas uma questão de tempo. Sem dúvidas, uma bela estreia no romance. Que sua obra chegue o mais longe possível.

Karine Silva Oliveira é filha de José e Maria, (como nos antigos contos de fadas) adotou o Pseudônimo Karine Bassi aos 13 anos, quando ganhou um concurso de contos na escola em que estudava. É escritora marginal contemporânea, slammer, poeta, contista, editora, feminista e ativista das causas sociais. Educadora social por opção e professora de Biologia por graduação na Universidade do Estado de Minas Gerais. É moradora da extrema Zona Oeste, na Região do Barreiro onde atua como articuladora do ColetiVoz, produtora e atriz na companhia de teatro marginal periférico, Cia 5SÓ, e idealizadora e coordenadora da editora popular Venas Abiertas. Agita diversas ações socioculturais em toda a Belo Horizonte e região metropolitana a partir do projeto “De quebrada pra quebrada”. Sob o caminho uma rajada de ventos é sua obra de estreia no romance.

Publicidade

Deixe um comentário

Faça o login usando um destes métodos para comentar:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s