Do que é feito a literatura contemporânea e quantas cores, texturas, sabores e sons carregam as palavras que a compõe? Se responder a essas e outras perguntas não é uma tarefa fácil, menos ainda é adentrar na complexidade das relações humanas, traçar o perfil de uma sociedade e seu tempo, como ocorre na mais recente obra de Alexandre Willer, Nunca mais voltei (2020), publicada pela Editora Folhas de Relva.

Ao longo dos seus dezesseis contos a resistência às intempéries da vida e a necessidade de se impor diante de tudo reaparecem na obra, de uma forma ou de outra. Em “Romeu tem que morrer”, por exemplo, Willer evoca a morte como meio para o renascimento. Não como o de uma Fênix que, após arder-se em chamas, das cinzas volta a ser o que era. A morte pela qual Romeu tem que passar diz respeito à morte de um símbolo, um amor mitológico e excludente de outras possibilidades. É preciso que aquele amor shakespeariano morra para que os amores queer ganhem vida e coexistam com outras tantas afetividades, sejam puras, dóceis, coléricas ou animalescas feito um cão. Willer não se esquiva da complexa tarefa de problematizar o amor que só quem o sente aceita a sua desrazão de ser.
Em “Verona e Marcelo” é preciso velar a morte do amor fraterno para que o amor próprio floresça, e mais do que isso, para que ele se torne liberto de todo cárcere e se permita seguir por onde quiser. Em “Vinte e cinco”, por seu turno, a paixão juvenil, o desejo ardente pelo primeiro amor e o despertar de inúmeros outros sentimentos atravessam o tempo e ressurgem com toda impetuosidade para afirmar que somente quando um sentimento é intenso e verdadeiro ele capaz de resistir às agruras da vida e ao passar dos anos.
Se, entre um conto e outro, paira a dúvida sobre a existência ou não de uma Autoficção-biográfica — apesar de ser um traço representativo da literatura LGBTQ+ —, o que é inegável e facilmente reconhecível é a destreza de Willer ao conduzir suas narrativas. O lirismo em algumas frases concede aos contos ares de uma prosa-poética, uma musicalidade em determinados trechos de acordo com o clima e o tom desejado. Como, por exemplo, no parágrafo em que o narrador de “Verona e Marcelo” discorre sobre a infância das personagens: “Marcelo não entendia, com seu cérebro infante, como aquela criaturinha ainda mirrada podia ser sangue do seu sangue. Não vingaria, decerto, pois parecia se quebrar simplesmente ao se porem os olhos em cima dela. Já se via aos cuidados com a irmã, sempre frágil e doentinha”.
Quer seja despindo os sentimentos de qualquer pudor, ou revelando a face oculta e nem tão bela de alguns deles, entre encontros e desencontros, uniões e separações, Willer reflete sobre as relações humanas sem se esquivar diante da complexidade e armadilhas do tema. E ao que tudo indica, há menos intenção em seguir regras e fórmulas ortodoxas relativas ao gênero (conto) do que proporcionar aos leitores uma experiência estética diversa em seus elementos narrativos (enredo, personagens, espaço e tempo narrativo, linguagem, discurso etc).
No conto de abertura, “100”, a breve narrativa é um belo exemplo de que, às vezes, poucas palavras valem mais do que centenas delas. E que, ao término de tudo, a palavra que sobra quando outras se calam não representa o vazio, a inexistência de todo o resto. O mundo que se acaba num gesto afetivo dá lugar a outro onde a existência daquele momento é tudo o que importa.
É desse mundo das (im)possibilidades que Nunca mais voltei nos fala, tensionando o diverso e o adverso entre aquilo que é vivido-experienciado até as últimas consequências e a sua feitura-transformação em obra literária. A fugacidade do tempo, a descoberta do sexo, o gozo pela vida e a sua finitude, paixões e amores, renúncia, resiliência, intolerância, desprezo, rancor e ódio. Inúmeras são as camadas que compõe as personagens da obra em questão e suas trajetórias. Por vezes, algumas delas parecem atravessar as narrativas, sobretudo aquelas em primeira pessoa. Se, de fato, isso ocorre ou não, é algo restrito ao pacto estabelecido entre leitores, autor e obra.
Ao contrário do que o título sugere, Nunca mais voltei é daquelas obras em que se a revisitação não for uma necessidade, certamente é um desejo que surge ao término de suas páginas. O sentimento evocado assemelha-se com o do seu derradeiro conto, “200”. Haverá quem não goste e realmente nunca mais volte? É óbvio que sim, como ocorre com inúmeras obras, independentemente do seu lugar na história da literatura. Mas o oposto também é certo, quer seja guardada uma flor entre suas páginas que relembre alguém ou não.

Alexandre Willer Melo é de São Paulo, capital. Tem 51 anos e mora no centro velho da cidade, é autor do livro de contos Maré Vazante e outras Estórias (Clube de Autores, 2013) e participou das antologias Homossilábicas Vol.2 (Editora Escândalo, 1998), Cem anos de amor, loucura e morte (Editora Moinhos, 2017), GOLPE: Antologia Manifesto (Nosostros Editorial, 2017) e da antologia A Resistência dos Vaga-lumes (Editora Nós, 2018).