Composto por 46 poemas, muitos deles resumidos em três versos com cinco ou seis palavras, a mais nova obra de Adriane Garcia, Eva-proto-poeta (Caos & Letras, 2020) é um convite à reflexão sobre a Gênese humana, sobretudo no que diz respeito ao simbolismo mítico-cristão e a representação da mulher contida nele.
Antes de adentrarmos na análise da obra em questão, é preciso dizer que a busca por uma compreensão literal ou mais ampla e profunda, seja pautada por uma exegese ou pela hermenêutica, quase nada tem a contribuir para tanto. Sobretudo porque, se o texto bíblico se constitui e se interpreta por meio da revelação e dos dogmas a ela fundamentada, a proposta que Adriane Garcia apresenta com sua obra requer outro tipo de experiência, algo próximo daquilo que se entende por exercício poético.

Nessa perspectiva, independentemente de qualquer termo ou conceito em voga que se queira qualificar a saga de Eva e Lilith, a liberdade talvez seja o tema mais caro em Eva-proto-poeta, sem o qual nenhuma terminologia de luta, resistência e afins teria sentido, e muito menos seria possível a existência de qualquer ser vivente ou sua razão de ser. Até mesmo porque, toda forma de opressão nada mais é do que a privação da liberdade.
Ao desnudar toda construção feita sobre Lilith ao longo do tempo, por meio do apagamento, da expulsão e todas as formas de invisibilidades e silenciamentos possíveis; o eu lírico de Eva-proto-poeta desvela a sua verdadeira face, primeiramente apresentando-a a Eva, para assim ocupar o lugar que lhe pertence.
A necessidade de dar nome a todas as coisas urge dessa reunião fraterna entre Eva e a mulher primeira “que não deveria ser transformada/ nem em estátua de sal”. Seja desvendando os mistérios envoltos em sua in(existência), ou retirando aquilo que cobre sua imagem.
Para além do revisionismo-mítico-teológico, reforma, desconstrução ou qualquer outro termo de caráter bélico imputado aos versos de Adriane Garcia, o que sobressai em sua verve poética é uma espécie de desnudamento, no sentido mais libidinoso do termo e longe da objetificação reinante, e por isso, mais próximo do seu caráter libertário. O que implica dizer que, os poemas breves/pequenos de Eva-proto-poeta assemelham-se mais à germinação de algo, em busca de força e vitalidade para crescer e se multiplicar; do que a qualquer sentido genital que se queira atribuir-lhe.
O grito inaudível daquelas que sofrem, a ausência de deus perante a súplica, a onisciência e demais atributos divinos postos em xeque, a escrita como libertação e quebra do silêncio. Ao contrário do que se imagina, importa menos retornar para um lugar criado por deus, do que construir algo que verdadeiramente possa ser chamado de paraíso — já que as experiências anteriormente vividas deixaram marcas profundas não apenas no corpo e na mente, mas no próprio ambiente em que foram experienciadas. Tanto é que, ao servirem as costelas de Adão, Lilith e Eva não apenas põem um fim à existência do símbolo de suas opressões, como também aniquilam a existência daquele que as criou.
Compreender a intenção artística de uma obra aparentemente minimalista e sucinta como Eva-proto-poeta pode até não ser algo tão fácil quanto se imagina à primeira vista, muito menos se não levar em consideração o exercício poético citado anteriormente. Como toda germinação/gestação, é preciso que o tempo e os seus efeitos tenham a duração necessária, e que os frutos deste labor poético advenham e que por meio deles surjam outros tantos.

Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (Conceito Editorial, 2019).
Agradeço pela leitura tão atenciosa e pela generosidade que há em divulgar livros.
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Eu é que agradeço pelo feedback, Adriane!
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