Torto Arado, de Itamar Vieira Junior

Seguindo na contramão da literatura contemporânea brasileira, Itamar Vieira Junior resgata a história de um Brasil ainda desconhecido (Invisibilizado), ou, como o próprio autor define em suas entrevistas, “um Brasil anacrônico, que parou no tempo”.

Vencedor do Prêmio LeYa 2018, Torto Arado (Todavia, 2019) retrata a trajetória dos trabalhadores rurais de Água Negra, uma fazenda localizada na região da Chapada Diamantina, interior da Bahia. Em grande parte, a narrativa fica a cargo das irmãs Bebiana e Belonísia, que têm suas vidas marcadas pelas mudanças que ocorrem nos ambientes e na transição da infância para a vida adulta. É justamente a partir do evento trágico que emudecerá uma das irmãs, ainda na infância, que adentramos numa trama sobre a ganância dos homens na disputa pela terra, a relação de poder entre os patrões e subalternos, a beleza e a espiritualidade do jarê (religião afro-brasileira praticada na região da Chapada, influenciada pela umbanda, pelo espiritismo e pelo catolicismo), e sobre a lida na roça, repetida em forma de brincadeira pelas crianças.

Aos poucos Itamar Vieira Junior nos revela, por meio de suas narradoras-personagens, um universo de luta e resistência, sem perder de vista a exuberância das paisagens cuidadosamente descritas, das relações humanas e da belíssima oralidade rítmica e poética de um povo, ecoada ao longo da narrativa. Vozes que lutam pelo direito à terra e pelo direito de existir, enquanto povo quilombola. Homens e mulheres que aprenderam a lidar com a terra desde o primeiro sopro de vida e se dedicaram a ela até o último suspiro. Resistindo às opressões provocadas pelo próprio homem e pela natureza, nos períodos das grandes secas e das enchentes.

Torto Arado se configura, sobretudo, como um coro de vozes de mulheres que trazem no corpo e na alma as marcas do tempo e de uma ancestralidade praticada desde a mais tenra infância. Seja na luta pelo resgate da identidade e da história do seu povo, ou na luta contra a violência de uma sociedade racista, machista e patriarcal, que se mantêm velada de inúmeras formas. Como, por exemplo, na cena em que Tobias, esposo de Belonísia, chega em casa e a encontra toda arrumada e com a comida pronta no fogão de lenha, mas não agradece a mulher por tudo o que ela fez, pelo fato de ser homem. Mulheres que nos momentos mais extremos eram obrigadas a parir nos canaviais, porque não podiam deixar o local de trabalho e nem tampouco parar com a produção.

O trabalho realizado de domingo a domingo pelos moradores de Água Negra tanto representa uma relação íntima dos homens e das mulheres para com a terra, quanto simboliza a exploração da mão de obra do proletariado, que, neste caso, tinham como recompensa a permissão para permanecerem naquelas terras. Uma vez autorizados pelos senhorios, podiam construir casebres de paredes de barro e telhado de junco e produzirem alimentos para o consumo. Ou seja, moradas que se desfaziam com o tempo, e que não demarcavam de forma duradoura a relação deles com Água Negra, além de entregar parte do que produziam aos senhores como forma de gratidão. Condições de vida de um sistema escravagista abolido em papéis, e que se perpetua até os dias atuais.

Itamar Vieira Junior recupera a história de um povo como quem leva em conta “que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido”, conforme observa Walter Benjamin na segunda tese sobre o conceito da história. Conforme sublinha o filósofo alemão “somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado”. Nessa perspectiva, as narradoras de Água Negra assemelham-se ao Angelus Novus, de Paul Klee, baseado na análise feita por Benjamin, segunda a qual, enquanto nós olhamos para o passado e vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo da história vê uma catástrofe única “que acumula incansavelmente ruínas sobre ruínas e as dispersa sobre nossos pés”. O filósofo alemão nos fala ainda sobre as vozes daqueles que foram derrotados ao longo da história. São ecos de vozes emudecidas. A representatividade vívida de uma ancestralidade antiga, “a frágil força messiânica para a qual o passado dirigiu um apelo”. Um apelo que, segundo Benjamin, não pode ser rejeitado impunemente.

A recuperação dessa história, ou, o acolhimento a esse apelo do passado, inicia-se com a própria tessitura desse registro, e com o não reconhecimento da história oficial com seus heróis bandeirantes, militares e toda herança deixada pelos portugueses em um país abençoado por suas riquezas e pela miscigenação. Vale dizer, segundo as teses benjaminianas, a história que conhecemos é a história dos vencedores, aqueles que “participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão”. Não à toa as crianças na escola se interessam mais pela comida do que pelas letras e o Hino Nacional, ainda que, aparentemente, a fome seja a única razão de tal desinteresse.

Por fim, se a literatura é um ato de resistência, como bem disse um nordestino que ousou governar este país — resistência que ocorre “nas trincheiras cavadas com tanta garra e tanto carinho por gente que nem Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e cada professora e cada professor anônimo deste país” —, Torto Arado se firma como uma obra que merece ser lida, relida e propagada como um ato político.

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. Publicou os livros de contos Dias e A oração do carrasco (finalista do Prêmio Jabuti), além de outros textos ficcionais em diversas publicações nacionais e estrangeiras.

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